Como católica, este costuma ser o período do ano em que me recolho, em que me revejo, em que sou juiz de mim própria, em que me proponho a fazer uma caminhada melhor. Costumo chegar ao Domingo de Páscoa com a confiança de que, apesar de estar muito aquém, estou a caminhar e vou no sentido certo. E isso conforta-me e prepara-me para o que vier.
Então, o que mudou?
Não foi a fé. Não foi
a certeza de que existe algo muito maior do que eu. Não foi sequer a certeza de
que um dia, quando isto aqui deste lado chegar ao fim, vou prestar contas do
que fui, do que fiz, dos meus erros e tentar equilibrar a balança com o que fiz
de bom, o que dei, o que amei.
Estou convencida de
que assim será e estou preparada para aceitar e assumir o caminho que percorrer
até lá. Nada disso mudou.
O que mudou, foi o que
sinto que pesará nesse juízo. Não porque mudaram as crenças que tenho naquilo
que é certo, que é importante, que vale. Pelo contrário. O que mudou é que
deixei de acreditar no juízo dos homens quando falamos de fé. Porque fé, antes
de tudo, é amor. E ninguém pode ser fiel a Deus, a Cristo, sem amar os outros e
aceitá-los na sua diferença. Ninguém se pode dizer cristão se acreditar que o
amor escolhe cor, sexo, condição social ou estado civil.
Amor é maior do que
tudo isso. Não se encerra em dogmas prepotentes que ditam se os crentes podem
ou não amar quem amam, se podem ou não casar com quem querem, se podem ou não
divorciar-se quando percebem que não são felizes. Essa é a mentira perpetrada
pelos defensores de que existem amores sagrados e outros que são pecado. Todo o
amor é sagrado. Se não for sagrado, se não for um sentimento puro, generoso,
altruísta, livre e desinteressado, pode ser muitas outras coisas, mas não é
amor.
Não vou alongar-me em
detalhes sobre a minha história, as minhas mágoas, as minhas sucessivas desilusões.
Não seria interessante de ler e há feridas nas quais não vale a pena
escarafunchar.
Vou apenas dizer que,
durante mais de um ano, passei por um processo doloroso, que envolveu as
pessoas de quem mais gosto, e fiz um mea culpa perante um juiz, e outros
tantos burocratas da fé, a quem eu não reconheço legitimidade para me julgar. Tudo
isso, páginas e páginas de declarações e explicações, para convencer o tribunal
das razões que levam dois jovens imaturos a casar, quando ela engravida, e
porque é que, depois, não dá certo.
Quando o processo
chegou ao fim e a almejada nulidade foi proferida, mas ainda assim com direito
a registo e tal, para todos saberem que a igreja escrutinou, eu, em vez do alívio
que pensei vir a sentir, da renovação da esperança e da fé, senti-me
desamparada.
E então a igreja, dita
mãe acolhedora de todos nós, mais ainda dos pecadores convertidos, quando me
achei suficientemente impoluta para transpor, sem restrições, as suas portas
diz-me “Alto lá, onde vais? Isto ainda não acabou, falta-te o matrimónio, minha
filha. Até lá, nada de comunhão, que vives em pecado.”
Pois é, regras são regras. Há séculos e séculos que o clero dita regras.E dizem-me dois ou três padres, em jeito de conforto:
- Podes fazer comunhão espiritual, minha filha. Essa é a mais importante.
E eu, de olhos arregalados, pergunto:
- Se essa é a mais importantes, muito mais do que a hóstia na mão do sacerdote, porque essa, sim, é a verdadeira união com Cristo, não é essa que me deveria estar vedada, se Deus, realmente, não me curte?
Então, para Ele eu sirvo, com ele está tudo bem, que ele perdoa, convosco é que nada de partilhar a mesa?
Dá que pensar, não é?
E torna-se clara, para
mim, a certeza de não quero compactuar com a hipocrisia de uma instituição que,
desde sempre, quis controlar e manipular as pessoas.
Quando há semanas ouvi
a última posição do Vaticano relativamente ao amor entre pessoas do mesmo sexo,
veio-me à memória o capítulo da encíclica evangelii gaudium dedicado aos
homossexuais e divorciados recasados e aquilo que na altura li como abertura ao
acolhimento e à igualdade, vejo agora como mais um conjunto de princípios regras
para guiar a igreja na correção destes males. Aquilo que me pareceu tolerância,
talvez fosse, afinal, condescendência.
Ainda não foi desta,
apesar do progresso que cri possível com este Papa moderno, do mundo, das pessoas.
Vamos continuar a ter
pessoas diferentes. Vamos continuar a ter pessoas certas. Vamos continuar a ter
pessoas que precisam de ser orientadas e corrigidas.
Mas a minha perceção e
a da igreja relativamente àquilo que tem distingue as pessoas, está em polos
diametralmente opostos. É que, para mim, o valor de uma pessoa está na sua
capacidade de amar, independentemente de qualquer preconceito, de lutar pela
igualdade e pela justiça e de erguer a voz e defender quem mais precisa. Para a
igreja, boa parte do juízo assenta em com quem e com quantos cada pessoa se
deita.
Acredito, piamente,
que num frente a frente entre estas duas visões, Deus penderia para o meu lado.
E assim, se calhar esta
Quaresma não foi completamente infrutífera. Chego à Sexta Feira Santa
finalmente capaz de verbalizar o sinto e assumindo que não posso, não quero, acompanhar
uma instituição que, sucessivamente, me tem feito olhar do lado de fora da
janela. A mim e a tantos outros cuja única falta que cometeram, foi ser
livres no seu amor.
A minha fé em Deus permanece inabalável. Nos homens é que acredito menos.
Comentários
Enviar um comentário