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Crónicas de Desenganos


 I. 
Dos encantos quebrados

Lembras-te de quando me encantavas?

Falavas e a tua voz era uma carícia, a derreter-me entre as pernas.

Se calhava de acordar, a meio da noite, fitava o teto e, de olhos abertos, inventava pesadelos que culminavam connosco desistidos um do outro.

Pensava não haver vida além de ti.

Dei-te o avesso, as entranhas, e toda a demais escuridão.  

Achei que, se me faltasses, a vida me condenaria à renúncia e retidão.

Sabia-te, sem tocar, o queixo áspero. Via-te a língua bater nos dentes brancos, e os meus lábios mexiam como se sorvessem os teus. 

Naqueles acasos em que a tua respiração me roçava a pele, eu cria que era essa a razão de não ter escamas. Nem penas. Nem roupa. 

Um toque do teu suspiro, despiria até a alma. E despi. Tu é que não soubeste.  

Depois, sem aviso, morreu o encanto. Não sei dizer-te como foi.

Num instante fugaz, olhei-te e não brilhaste. Foste só um corpo, igual aos outros corpos. Quis buscar-te a luz nos olhos, mas lembrei-me que nunca me olhaste a direito.

Vi-te como na primeira vez que te vi, antes de me teres encantado. Quis dar-te cor e não consegui.

Alguma vez voltaste a um lugar mágico da infância?

Foi assim que voltei a ti, descobrindo uma feira popular de diversões gastas, bancos rasgados, balões vazios. Entre carrosséis imóveis e realejos mudos, um palhaço regressava ao camarim, com o rímel a escorrer pelo sorriso.

Já não sei sorrir para ti. Nem por ti. Já não te vejo com graça. Já não há saliva tua que me mate a sede.

És um corpo, entre outros corpos. Usado por outras mãos, suspirado por outras caricias. 

Lembras-te de quando me encantavas? Eu lembro-me. 

Só não me lembro porquê.

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