Avançar para o conteúdo principal

Quase 45

 



Perto de completar quatro décadas e meia, já dá para ir tendo uma ideia do que isto é. Do que conta. Do que importa e do que não vale um chavelho.

Ao longo da minha existência, (que deve andar perto do meio, julgo eu, que tenho a ambição de chegar aos 100, com lucidez e saudinha), fui passando por algumas situações extremas que me obrigaram a alinhar os pratos da balança. Quem não? Talvez uns poucos, afortunados ou distraídos.

O extremo, para mim, é a possibilidade de perder ou ver sofrer as pessoas que amo. Claro que há outro nível de situações extremas, não tão íntimas, que me abalam e dão que pensar, mas que, por não mexerem diretamente comigo, não sendo eu uma Madre Teresa, não me abanam até aos alicerces. Se deviam? Talvez devessem. Mas ainda não atingi esse nível de abnegação. Quem sabe, nas próximas décadas.

Por enquanto, as minhas grandes vulnerabilidades residem no sofrimento dos meus. Há poucas coisas tão cruéis como vermos faltar o ar a alguém, sem conseguirmos substituir-lhe a respiração. Há poucas coisas tão duras como largar a mão a uma criança (à nossa criança) e perceber que a coragem dela é infinitamente maior que a nossa. Há poucas coisas mais difíceis que tentar fazer sorrir uma mãe que não encontra rumo para além da tristeza, e dar-lhe a mão para a ver adormecer. Há poucos lutos mais difíceis de fazer do que os que fazemos pelas perdas que, não sendo nossas, doem como se fossem. Há poucas lágrimas mais amargas do que as que desfiguram os rostos mais queridos.

Então, posso concluir que a vulnerabilidade é diretamente proporcional à intensidade do amor.

Amar, com o coração inteiro, é, também, abrir o peito ao sofrimento. É não ter meias medidas. É dar tudo, mesmo quando tudo pode resvalar em nada. É acreditar que há um depois, contra todas as expectativas. É continuar a lutar, quando nos dizem que o tempo se esgota ou que as subidas são ingremes. É teimar. E teimar. E teimar.

Amar, com o coração inteiro, é fazer dos sonhos alheios a nossa bandeira. É aplaudir sem inveja, é recuar para ver os outros crescer. É acordar a meio da noite, em sobressalto, porque nos esquecemos de ser gentis.

Amar, com o coração inteiro, é dar os braços, a camisola, as horas, por amizades que se estendem em pores-do-sol infinitos. É ter laços com 300km de fita que não se desfazem na distância do alcatrão.

Estou à beira de completar mais um ano. Um ano que se fundiu noutro e baralhou o tempo e as distâncias, que me sacudiu, que oscilou entre momentos de euforia e de desamparo. Um ano que teve mais meses, e em que os meses foram mais iguais. E, ao mesmo tempo, um ano em que os minutos fugiram quando faziam mais falta. Eternizaram-se nas saudades. Troçaram de mim.

Num ano (e um pouco mais) em que tanto nos faltou, tanto nos foi vedado, ficou-me a certeza de que amar, com o coração inteiro, é ser vulnerável e saber que essa vulnerabilidade me torna mais forte.

É ver uma criança abrir os olhos de manhã e saber que aquele sorriso é a razão do sol subir no horizonte.

É deliciar-me com um cachorro a espreguiçar-se.

É molhar os pés na água fria e sentir o coração quente.

É beber 3 copos de vinho e ficar zonza e rir sem saber porquê.

É abraçar e beijar e não ter medo de respirar o mesmo ar.

É tatuar na pele as histórias que me tatuam a alma.

É viver para o que conta. E esquecer o que não vale um chavelho.

Comentários

Mensagens populares deste blogue

Mudanças

  Vais ter de mudar de casa, lamento, já não cabes aqui. Empacotei as tuas coisas. Quero que saias já. Fiz a partilha sozinha porque a casa é minha. Levas as noites quentes, o meu sorriso e a televisão. Ah, e levas também os orgasmos. Metade eram falsos. Com as madrugadas fico eu. São as horas em que escrevo melhor. Também guardo o cobertor e o gato. Não precisas de confortos. A culpa, deitei fora. Não tapava nem frinchas. Pelo meio das arrumações, encontrei um bilhete, pingado de café, “compra-me tampões. SEM APLICADOR!”, com um coração no canto, a piscar o olho. Rio-me. Sobra de nós uma hemorragia inútil. Abro uma garrafa de tinto e sento-me, no chão da cozinha, a brindar aos infortúnios. Tens à porta a mala e dois caixotes. Levas o bengaleiro, detesto os casacos pendurados na entrada. E os amigos, com quais ficas? Que sejam eles a escolher. Por mim, dois ou três bastam. Não toques à campainha. Vê lá se, ao menos desta vez, trazes a chave contigo. Deitei a tua escova de

It’s beginning to look a lot like Christmas.

  Is it? Montei a arvore. O presépio. Fiz arroz doce. Acendi as luzinhas e inspirei fundo o ar frio a ver se dezembro entrava. Não sei o que se passa com o tempo. Ou se é com o tempo que se passa. Faltam 20 dias para o Natal e eu esqueci-me da playlist pirosa e da coroa do advento. As figuras do presépio parecem-me só figuras. Comi uma rabanada que me enjoou ao ponto de prometer não comer nenhuma mais. Se calhar não é o tempo. Se calhar sou eu, que ando perdida por setembro de 2020, quando os pores do sol eram intermináveis e cria que no ano seguinte já tudo estaria bem. O ano passado aguentei o Natal esquisito, a ausência de abraços, de colos, de mesas barulhentas, de jantares com amigos, de famílias sem medos. O virar do ano tranquilo, resguardado, sem fogos de artificio e outras companhias, pareceu-me um bom augúrio para o que viria em 2021. Mas este ano está difícil. Não me saem da cabeça as palavras à mesa do dia 1 “tenho a sensação que 2020 vai ser um ano extraordinário

Desculpa-me

  Pedes desculpa, mais uma vez. A súplica vibra-me nos tímpanos e eu esqueço. Escancaro os braços, a vida. Esfrego os hematomas e ergo, para ti, as sombras do olhar. Regresso. Entro a porta, esquecendo-me porque saí. Puxo a miúda, rabugenta, pelo pulso. Faltam-me dois molares. Digo que uma cárie os levou. Ela minga quando te aproximas. Com os olhos baços, limpa o ranho à blusa. - Desculpa. – Dizes-lhe também a ela. Faz-se pequena, duvida. Na manhã seguinte, arranco-a da cama, cedo demais. Enfio-lhe o leite pela goela, ansiando que não faça barulho, para não te acordar. Sento-a no colo e pesa-me o embaraço. Beijo-lhe o cabelo com lábios amachucados. Deixo-a na cresce, sem tirar os óculos. Raspo uma nódoa seca da camisola. O recado da educadora flutua através de mim. Volto. Numa inspiração perversa, chamo a isto lar. Faço café. Escaldo a garganta com um gole amargo. Estremeço ao sentir a tua mão na cintura. Cheiras a dia lavado. - Vai ser diferente, agora. Quero crer-