Ela.
Senta-se numa rocha, olhando o mar. Aprecia as marés cinzentas,
as ondas cheias, o embate impiedoso que rói a pedra, devagar. De lábios
entreabertos, saboreia o sal que dança no ar. Lembra-se de pessoas deitadas no
areal, em tardes mornas de verão. Famílias felizes, namorados encantados, crianças
pequeninas a tatear o mundo com os dedos dos pés. Uma senhora que passeia o cão,
os amigos no café, entre cerveja e tremoços, as amigas, pelo meio dos copos de
vinho, a maldizer os maridos. Todos ocultando desejos.
Pensa no amor. Nas amizades. Nos amantes. Nas convenções. Um
dia, alguém estratificou e designou os sentimentos.
Ela teve um amigo que não esquece, apesar dos amores que se
lhe seguiram e pelos quais o abandonou. Podiam ter-se apaixonado, se ele se
apaixonasse por mulheres. Valeu-lhes isso, ou ter-se-iam arruinado numa dolorosa
história de amor. Ainda assim, amaram-se, claro, até ao dia em que ele se
despediu do mundo, sem se despedir dela. Continua a procurar, noutros lábios, os
lábios dele.
Tem amigas com as quais se comprometeria para sempre e com
quem dividiria a morada se, à vez, acalentassem sonhos e calassem choros aos
filhos de umas e outras. Seduziu-a, a tempos, a vida em comunidade feminina,
mas depois lembrou-se que se cansa facilmente e que aprecia a solidão.
De resto ela sempre escolheu os afetos pouco ortodoxos.
Gosta de bichos mais do que de muita gente. Gosta de silêncios e de amarguras.
Gosta de corpos, para lá do género. Aprecia as curvas e as
sombras. Reduz quase tudo a estética e a texturas. Corta-lhe a
respiração a bestialidade do drama.
Apesar disso, é sempre para o mesmo lado que pendem as suas
fraquezas. O corpo feminino, por mais atraente que seja, não lhe desperta desejo.
Em verdade, nenhum admira mais que o próprio, no esplendor dos seus
defeitos. Nalguns dias, tem a certeza de que essa incapacidade roça o desperdício.
Nos homens gosta do humor fácil. Da convicção que têm, mesmo
quando estão a ser levados. Do suor a colar-lhes a roupa ao corpo. Gosta de lhes
medir forças. Delas gosta das gargalhadas que vão do riso às lágrimas por meio
de pingas de urina e falta de ar. Gosta de quase tudo, menos de as deitar
numa cama. Também não se deita com homens, já tem as noites cansadas e, nas
madrugadas, prefere o mar.
Do sexo, só quer palavras.
Tem amantes que a beijam na testa e que nunca a viram nua. Tem
amigas pelas quais se despiria, sendo capaz.
Há coisas que só os homens entendem, porque são homens. E empatias
que só as mulheres sentem, porque são mulheres. Ela sabe e, entre uns e outros,
escolhe os melhores.
Acredita em amores eternos e em paixões voláteis.
Ela, é livre das nossas convenções. Dos afetos, colhe apenas
o que lhe interessa. Depois vira costas, a pensar noutras coisas.
Se nós lhe ouvíssemos os pensamentos, facilmente nos tentaríamos a deitá-la da rocha abaixo e vê-la despedaçar-se no mar. Voltaríamos descansados às nossas famílias felizes, aos namorados encantados e
às crianças pequeninas a tatear o mundo com os dedos dos pés.
E ela sabe.
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