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Doces, tentações e outras reflexões


Entre os cristãos viveu-se por estes dias a Semana Santa. São dias de jejum, de abstinência e sobretudo da reflexão do culminar da Quaresma. A partir das 15 horas da Sexta-Feira Santa, hora em que Jesus morreu, até ao Domingo de Páscoa, a Igreja remete-se ao silêncio. É, por excelência, o tempo de refletir: onde vamos, que caminho é o nosso, quem acompanhamos, quem seguimos, quem deixamos para trás, o que nos move.
Esta Quaresma foi para muitos, por força da realidade em que a vivemos, mas dura de percorrer, porventura mais solitária, nalguns dias mais penosa, mas sobretudo, deu-nos mais tempo para pensar. Para estar longe da confusão e do barulho, obrigados à clausura das nossas casas, do nosso espaço, de nós próprios. Se este não foi um tempo em que nos forçámos a olhar mais para dentro, então dificilmente outro o será.
Nestes dias de isolamento, que já são tantos, temos aprendido novas rotinas, novas formas de comunicar, novos espaços na nossa vida para outras coisas acontecerem. É tudo diferente e olhamos o mundo e os outros de maneira diferente. Esta barreira que se interpõe entre nós e os outros e que nos serve de proteção, de certa forma também nos aproxima. Descobrimos sorrisos e conversas onde não sabíamos que existiam, porque agora temos tempo.
A minha campainha hoje tocou 2 vezes (e não era o carteiro): na primeira recebi flores e ovos caseiros, na segunda uma tijela de aletria morna.
Hoje, Sábado Santo, era ainda dia de jejum, mas aquela aletria sabia tanto a limão e a carinho que eu tenho a certeza que Jesus não ficou zangado por eu a ter comido. (O pior é que pensei cá para mim: já que vou comer aletria à sobremesa, o melhor é também comer o arroz de tamboril e gambas que está comum aspeto divinal e acompanhá-lo com um vinho branco fresquinho, senão nem sabe à mesma coisa. Se assim o pensei, assim o fiz: consolei-me.) 
A vida está cheia de tentações. Se for para cair nalgumas, que seja nestas. Que não seja na má-língua, no egoísmo, na inveja. Que não seja a tentação de nos acomodarmos e deixarmos de pensar que existe gente  para além de nós, que existe mundo, que não estamos no centro.
Cristãos ou ateus, descrentes, ou de outras fés, o que importa é fazermos bem. O que seja que fazemos. Em a casa, na família, no trabalho, entre amigos, entre estranhos ou entre vizinhos, fazermos bem. Sermos honestos, sermos gentis, generosos. Estarmos dispostos a dar e recetivos a quem nos procura. Termos tempo, termos espaço, termos braços abertos para quando nos deixarem abraçar. Lembrarmo-nos de dizer aos outros que eles importam, que sentimos a falta deles, que fazem diferença na nossa vida, que pensámos neles e sorrimos.
Liguei a uma amiga só para lhe dizer isso: passei na tua praia, lembrei-me de ti, tenho saudades, fazes-me falta. O meu coração ficou mais quente. E o dela também.
Amanhã é Domingo de Páscoa. É o dia mais importante para a Igreja Católica e para todos os cristãos. Porque é o dia do recomeço, da nova oportunidade, da página em branco, da história por contar. É uma Páscoa diferente, este ano. Muitos costumes, individuais e coletivos, ficarão por concretizar. Mas no céu é uma Páscoa igual à primeira e nas nossas vidas é a certeza de que, no fim, tudo vai ficar bem.
Amanhã, Domingo, é dia de festa. Aproveitem e cedam a todas as tentações boas: às amêndoas, ao pão-de-ló com queijo, ao cabrito, ao vinho tinto. Estamos cá todos, felizes por estarmos bem.
Boa Páscoa!

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